UMA VOZ UNIVERSAL DA POESIA
— AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
por Gilberto Menconça Teles
POESIA SEMPRE – Revista Semestral de Poesia. ANO 3 – NÚMERO 6 – OUTUBRO 1995. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, Ministério da Cultura, Departamento Nacional do Livro, 1995. Ex. bibl. Antonio Miranda
Augusto Frederico Schmidt teria completado em 18 de abril 89 anos e teria por certo aumentado bastante a sua volumosa obra poética, iniciada no ano mais quente do Modernismo, em 1928, quando o processo de criação de uma nova literatura, vindo de 1922, atinge o mais alto rendimento no sistema que se ia impondo. Coincidência ou amadurecimento cultural, em 1928, Os dois discursos exibem as suas forças, com bom predomínio dos modernos. O tradicional se representa na décima terceira edição das Poesias, de Bilac, na oitava de Poemas e canções, de Vicente de Carvalho, na quarta do Eu, de A. dos Anjos e na segunda de Luz mediterrânea, de Raul de Leôni, além de romances de Coelho Neto e Afrânio Peixoto; e o moderno se documenta numa série de importantes obras na poesia, no romance, no conto, na crítica, na teoria literária e nos estudos da cultura brasileira, como no Retrato do Brasil, de Paulo Prado, na segunda série dos Estudos, de Tristão de Athayde, atingindo as culminâncias da nova estética com A bagaceira, com a rapsódia de Macunaíma, com os contos de Laranja da china, com a poesia de República dos Estados Unidos do Brasil, com o Martim Cererê e, afinal, com o Canto do brasileiro, de Schmidt. Foi também o ano de poemas famosos como No meio do caminho e Essa nega Eulô. Enfim, um ano em que a geração que fez a Semana expõe o melhor de sua liberdade criadora; e em que os novos escritores desenvolvem outros projetos literários dentro do sistema modernista. É o caso de Augusto Frederico Schmidt que, pela sua técni¬ca e pelo conteúdo de seus poemas, deixou a crítica atordoada, sem conseguir ver na sua obra inicial nem as marcas do Modernismo nem os vestígios parnasiano-simbolistas.O jeito foi situá-lo num romantismo tardio e... modernista, como o fizeram Tristão de Athayde e Mário de Andrade.
A "LONGA SÉRIE" INÚTIL
O último poema do último livro de Schmidt se denomina mesmo O último poema, tal como Manuel Bandeira havia feito com o último poema de Libertinagem, em 1930. De acordo com o ritmo repetitivo que atravessa toda a sua poesia, assim começa: "Chegará o dia do último poema/ E o último poema sairá para o tempo tranqúilo e natural, / Sem nenhuma melancolia, como se fosse o primeiro nascido / Do espírito inquieto". E logo a seguir dirá que o poema "será simples e modesto/ Como se fosse um dos muitos da longa série inútil". Estão aí algumas imagens ou antiimagens (dado o teor coloquial, quase prosaico das mesmas) que podem oferecer ao crítico uma das possíveis direções na compreensão de sua poesia: ele parte da preexistência de uma Voz ou de um Sentido absoluto, uma "estética transcendental", diria Kant, a qual, fragmentando-se nos poemas e nos versos, consegue a sua natureza e identidade ao longo de toda a obra do poeta. Uma obra que, já no fim da vida, ele vê disfemicamente como uma "longa série inútil" proveniente de uma "força perdida". Impossível ler a sua poesia sem a consciência dessa "longa série", dessa totalidade humanística que de poema a poema e de livro a livro vai integrando o passado no presente e o presente num futuro providencialista, assim como vai também reintegrando o espírito na matéria e a linguagem nas suas formas pri¬mitivas de enunciação. Pode-se estudar a poesia de Schmidt — os seus 16 livros de poemas — reunindo-os em dois momentos sucessivos: um saindo de dentro do outro, não para contradizê-lo ou modificá-lo, mas para aperfeiçoá-lo à força de repetir os seus temas e técnicas. No primeiro, de 1925 a 1942, se dá a formação da personalidade do poeta, a definição de seus temas e a fixação de sua linguagem numa estilística aparentemente dominada pela frouxidão, pelo abuso das repetições, enfim, por aqueles "32 cacoetes que fazem o material da poesia dele" e que, segundo Mário de Andrade, parecendo feito para desvalorizá-lo, "antes o valorizam". Aí se incluem: Canto do brasileiro (1928), Cantos do liberto (1928), Navio perdido (1929), Pássaro cego (1930), Desaparição da amada (1931), Canto da noite (1934), e Estrela solitária (1940). No segundo momento, se dá a transformação ou, melhor, se verifica o esforço por mudar, se não os temas e técnicas, pelo menos o sentido formal do poema que se torna mais contido, como no uso constante do soneto, concebido da maneira mais liberal possível: com belíssimos versos decassílabos misturados com longos versos livres ou como no "Soneto do patriarca", de Mar desconhecido, onde versos alexandrinos se alternam com versos de treze, catorze e quinze sílabas, para terminar numa chave de ouro estranha, de 17 sílabas, à maneira dos longos hexâmetros greco-latinos:
Dentro em pouco virá a hora calma da morte;
E sinto a mão de Deus que se estende a colher-me,
Para que eu seja apenas uma espiga a mais na seara eterna.
São desta fase, de 1942 a 1965, os livros: Mar desconhecido (1942), Fonte invisível (1949), Aurora lívida (1958), Babilónia (1959) e O caminho do frio (1964). /Como se vê, uma longa série de livros de poemas que Schmidt deu à literatura brasileira, inaugurando entre nós e entre os modernos um novo humanismo poético: aquele que retira a sua força e sentido da pureza, da ingenuidade e do individualismo, tratando a linguagem literária como se ela fosse um veículo de oração, de comunhão com o mundo e com Deus, como se por ela passassem os desejos mais íntimos e mais obscuros da vida humana. A sua linguagem quebrou o espe¬lho do realismo na poesia brasileira: a sua paisagem era outra, a de dentro, já transformada em visão pessoal ou já literatizada pela tradição.
"A GRANDE VOZ "NA POESIA
A estréia de Schmidt fundou um novo signo na poética modernista: por um lado, descorti¬nava uma realidade mais abstrata e universal; e, por outro, fechava, de certo modo, o naciona¬lismo extremado da primeira geração modernista. Tal como Mário de Andrade que fez o verso novo a partir do ritmo tradicional, como no belo "Sou um tupi tangendo um alaúde", Schmidt reativou a redondilha menor e sobre ela edificou o ritmo fundamental de sua linguagem, aquele que irá ao longo de sua obra contrapontear com o decassílabo e com o verso-livre colo-quial e, pela natureza de sua construção, recitativo, declamatório e, por isso mesmo, sálmico e literariamente religioso. Eis um exemplo, entre inúmeros, desse ritmo pentassilábico, de cunho romântico mas semanticamente moderno: "E a lua chorava seu choro macio/E a lua deitava seu óleo oloroso/ Na pele tostada das lindas mulheres". O elemento mais evidente na construção de sua poesia é o processo da repetição (de palavras, de frases, de versos e de temas), chegando mesmo a ser responsável pela possível monotonia e pela frouxidão de muitos poemas longos.
Quase todos os títulos de seus livros se revestem de ambiguidade simbólica, quer dizer, inclinam o leitor para o sentido literal e, ao mesmo tempo, o submergem numa atmosfera de alegoria, como em O caminho do frio que aponta para o inverno europeu e, também, mais fortemente para a morte e para o sobrenatural que se presentificam no poema. É desta ambivalência que se serve o poeta para a percepção do seu universo, deste ou daquele lado da "irrealidade", como diria Manuel Bandeira. Schmidt vê, ouve, cheira, toca e degusta o real do seu imaginário. Mas a maioria das vezes ele simplesmente ouve: a sua poesia, do primeiro ao último livro, está cheia de vozes, das palavras "voz"/ "vozes", como se a sua percepção se desse por intermédio de um agente que fala: oráculo, demiurgo, Deus. No poema Retrato do desconhecido, de Estrela solitária, há uma série anafórica de vozes que documentam bem a obsessão oracular de Augusto Frederico Schmidt:
Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,
Voz de um homem perdido no mundo,
Voz que foi abandonada pelas esperanças,
Voz que não manda nunca,
Voz que não pergunta,
Voz que não chama,
Voz de obediência e de resposta,
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.
Há vozes que aclaram o ser,
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
Vozes de sonho, de maldição e de doçura.
Há, como se vê, um ritual litúrgico, de litania, tentando esgotar as possibilidades da palavra "voz"e criando no leitor a imagem de uma voz universal que se quer, simultaneamente, trans-cendental e humana. A repetição cria o encantamento, situa o leitor numa musicalidade que parece estar chegando dos primeiros momentos da Criação.
A VOZ DO POETA
As concepções poéticas de Schmidt, reajustadas ao longo de sua vasta produção, seguem o mesmo destino de seus temas e de sua linguagem: pouco de nacional, muito de universal; léxico simples e restrito, sem neologismos, sem invenção, sem estranhamento; temas que apontam para os universais da tradição literária: noite, vozes, mar, morte, mulher e amor; e um exercício retórico que se concentrou nas formas da repetição, numa simbologia até certo ponto vulgarizada e na obsessão também pelo adjetivo "grande"anteposto ao substantivo: "grandes lágrimas", "grande noite", "grandes dores" e mais de cem outras ao longo de toda a sua obra poética. Mas o talento do poeta foi aprendendo a tirar de tudo isso uma melodia interior schmidtidiana, própria dele, original, encantatória e bela. A tematização da linguagem literária, isto é, a expressão de sua própria concepção literária também se fez de maneira simples, repetitiva e franciscanamente religiosa, como na II parte dos Sonetos, onde o pensa¬mento poético está muito bem adequado à sua prática de poesia. Aí se lê que o poeta tem
Vontade de escrever. Vontade humilde de escrever,
Escrever à toa, sem dizer nada. Escrever sem razão,
Para distrair talvez um desejo incompreensível de chorar.
A sua voz soube dialogar discretamente com textos de outros poetas, tomando-os como tema, deformando-os, parodiando-os ou simplesmente fazendo paráfrases deles, como acon¬tece em relação a Casimiro de Abreu, Jorge de Lima, Álvares de Azevedo, Vicente de Carvalho, Gonçalves Dias, Cornélio Penna, Emílio Moura, Shakespeare, Dante e Camões, além dos vários temas tomados à Bíblia. E soube também servir de tema a poetas que lhe foram contem¬porâneos, como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Alphonsus de Guimaraens Filho. Em Mafuá do malungo, Bandeira escreve que "O poeta Augusto Frederico/ Schmidt, de quem dizem que está rico,/ Foi homem pobre, certifico, / Mas o poeta sempre foi rico". Drummond em V. de bolso, se vale das formas simples do folclore para dizer: "Fui à fonte de Schmidt / beber água, lá fiquei./ Quedava bem no limite/ do reino de onde-não-sei.". E em Discurso da primavera e algumas som hras sintetiza belissimamente sua admiração por Schmidt ao escrever, dez anos depois da morte do poeta:
Veleja o poeta em mar desconhecido?
Bebe de novo em invisível fonte?
Schmidt inquieto, nunca adormecido,
brinca talvez na linha do horizonte.
Com isto, Drummond se redimia daquele verso irónico ("O poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal...") que aparece no poema sobre o cinquentenário de Bandeira, em A Rosa do povo. E Alphonsus de Guimaraens Filho, em Absurda fábula, escreve que "O poeta empreende agora a travessia/ do mar desconhecido, / ele, pássaro cego e navio perdido."
Deveria terminar aqui, mas acho oportuno acrescentar que a voz de Schmidt não ressoou somente na poesia: ela repercutiu no cronista, no editor (que lançou José Geraldo Vieira, Graciliano Ramos, Vinícius de Morais, Gilberto Freire, Lúcio Cardoso, Octávio de Faria, Jorge Amado, Marques Rebelo e Amando Fontes, dentre outros); e vai ainda repercutir no bem suce-dido empresário (que, por exemplo, criou a cadeia de supermercados Disco) e, afinal, nas suas inúmeras funções na política internacional do governo Kubitschek.
E ainda a sua voz que nos vem dos Arquivos Implacáveis, de João Condé, onde registrou estes "10 Conselhos aos Jovens Poetas" do Brasil: 1. Fugir da poesia política, 2. Repetir-se o mais possível, 3- Fugir das teorias, 4. Não temer a decadência, 5. Confiar originais a João Condé porque serão reencontrados um dia, 6. Não ambicionar prémios, 7. Deixar a musa descansar à noite, 8. Não perseguir o pitoresco, 9. Conter-se diante das seduções da musa e 10. Esperar, porque a glória virá se tiver de vir", verdadeira arspoética tão importante para os jovens como para os velhos poetas deste país de patrulhamento ideológico.
Fiel a sua concepção poética e consciente de que a sua voz e a voz que constantemente ouviu das coisas e do mundo eram apenas "eco da voz de Deus", a poesia de Schmidt encar¬nou a idéia do logos, de uma grande voz, uma voz universal da poesia, a que a voz do poeta se juntou para a glória da poesia e da literatura brasileira.
Daí a importância, notavelmente cultural, que assume a reedição da poesia de Augusto Frederico Schmidt pela Topbooks, na iniciativa inteligente de José Mário Pereira. Trata-se de uma edição agora verdadeiramente completa, com os livros que saíram depois do volume de Poesias completas, publicado pela José Olympio, em 1956. Tem-se agora, de uma vez só, desenrolando-se diante de nós, o panorama de um discurso poético que se mostrou à altura das melhores produções do Modernismo e que o ajudou no alargamento de suas dimensões estéticas, restaurando na poesia brasileira o gosto pelos temas e pelas tradições mais caras ao humanismo e à modernidade ocidental.
Página publicada em janeiro de 2018
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